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quinta-feira, 1 de julho de 2021

“Não existe a família brasileira, mas as famílias, e elas são diversas, para além dos padrões”

Coordenadora da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do TRE-BA, Verônica Luciana da Silva reflete sobre a importância do respeito à pluralidade como caminho para a efetiva cidadania


Houve um tempo em que Verônica Luciana da Silva escutava “piadinhas” homofóbicas e deixava para lá. Às vezes, até ria junto. Isso deixou de acontecer quando ela percebeu que precisava se posicionar e não admitir a violência, nem mesmo quando vinha disfarçada de brincadeira. Servidora do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia (TRE-BA) desde 1994, Verônica vem desempenhando o que chama de luta diária.

Porque ainda é difícil ser mulher, negra e lésbica no Brasil, país da heteronormatividade branca e masculina. Verônica usa a consciência da diversidade para conquistar e ampliar espaço e respeito. Hoje, a mãe de Maria Beatriz, de 04 anos, e Maria Júlia, de 03 anos, coordena a Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do TRE-BA e continua se posicionando abertamente sobre quem é, com ternura e firmeza.

Nesta entrevista, a servidora fala sobre respeito, ativismo, conquistas, retrocessos e reflete sobre a importância da sociedade e das instituições assumirem a pluralidade como caminho para a efetiva cidadania.

As famílias brasileiras

É uma luta diária ser uma pessoa que, em tese, está fora dos padrões da família brasileira. E dos padrões para eles, né? Porque a família brasileira, num simples e leve olhar, ela hoje – e já há algum tempo – é composta por diversos conjuntos. É uma mãe com o filho, um avô com a neta, é um tio que cuida da sobrinha, uma tia que cuida do sobrinho, são dois pais, duas mães, dois amigos que geraram um filho...

A sociedade brasileira é o que ela é na realidade e não esse ideal de "descobrimento" do Brasil. É sempre muito difícil, eu particularmente não visualizo muita agressão, pelo menos não agressão mais contundente, mais forte. Mas vejo aquele olhar velado, que diz que você não pode estar em um restaurante e fazer um carinho na sua mulher, porque as pessoas vão ficar olhando, alguns vão levantar.

Mulher, negra, lésbica

É sempre um constrangimento, de você ficar se tolhendo e não demonstrar carinho em público, sendo que héteros podem fazer isso, e fazem. Mas gays, lésbicas e todos os outros não conseguimos ter essa tranquilidade sem estarmos preocupados se vamos ser agredidos, se vão nos chamar atenção, se vamos perceber que a pessoa se levantou só porque você deu um beijo na sua namorada. Realmente, é uma vivência complexa.

Eu, como uma mulher, negra, lésbica, venho durante a minha vida inteira vivendo essas questões todas relacionadas ao gênero, à pele e à orientação sexual. A gente se posiciona, continua lutando, exigindo respeito, colocando na cabeça das pessoas que isso é natural, que fazemos parte da sociedade, que isso faz parte do todo, parte da família, parte da convivência.

A gente vai pontuando, vai falando, às vezes, firme, às vezes, com uma ternura que também é bastante firme, dependendo da forma como se fala. É uma luta de todos os dias, mas a gente está aqui, em luta. Eu vivo em uma geração melhor do que minha mãe viveu e certamente minhas filhas vão viver uma geração melhor do que a que eu vivo, exatamente por essa luta diária.

Quero reverberar a importância da minha mãe na minha postura de afirmação, empoderamento e aceitação. Lembro de adolescente ela falando. “São meus filhos e os amarei do jeito que são, apenas desejo a felicidade deles”. Somos abençoados por ter uma mãe tão forte e que ama verdadeiramente seus filhos. Meu “paidrasto” (risos) também é fundamental para nossas vidas, sempre nos apoiando e respeitando. Somos uma família diversa, linda e muito feliz.

Para as famílias, eu digo: “apoiem os seus, isso faz uma diferença maravilhosa na felicidade deles. Acreditem na importância do amar, respeitar, aceitar, entender e defender. O amor sempre liberta”.

Não é brincadeira

No trabalho, eu não percebo comentários homofóbicos mais diretos. Nunca vi alguém dizendo "ah, aquela pessoa não quer conversar com você ou não quer fazer reunião com você porque você é lésbica". O que eu percebo, às vezes, é um tipo de brincadeira que, no começo, eu não fazia nada, muitas vezes até ria junto. Depois, você vai tendo uma consciência de que precisa se posicionar e não admitir.

Há muitos anos, venho fazendo isso. Toda vez que a gente está conversando e vem um comentário do tipo: "que é, viado?". Eu digo: "por que viado, como se fosse uma coisa depreciativa?". Aí escuto "ah, isso é brincadeira" e devolvo dizendo "não, isso não é brincadeira, é a propagação de um preconceito. Vocês ficam cimentando isso, de que viado é uma coisa negativa e viado não é uma coisa negativa. Muda esse disco aí, evolui. Para com esses comentários homofóbicos, nós somos mais do que isso".

Eu percebo que essa mudança vem acontecendo, há um cuidado, não que o preconceito tenha acabado, mas nada é exposto desrespeitosamente. No TRE-BA, eu ando em todos os lugares, converso com muita gente, gosto de muita gente e sinto respeito e um acolhimento.

Nunca tive medo de falar e nunca neguei minha orientação sexual. Fui casada com uma servidora do Tribunal, sempre convivi com amigos aqui e sempre me coloquei de forma natural. “Vocês são héteros, nós não e está tudo certo”.

Orgulho

Essas datas são importantes, a luta é de todos os dias, mas a data marca uma reflexão. Não é para ser uma festa sem ponderação, sem trazer à luz com evidência maior a importância de respeitar as pessoas LGBTQIA +.

Já ouvi uns questionamentos do tipo “ah, mas por que não tem o orgulho hétero?”. Não tem porque héteros podem andar livremente, beijar livremente, abraçar livremente, ter suas famílias sem ninguém estar sendo censurado, questionado, dizendo que isso é coisa do diabo, que não é coisa de Deus. Não dá para inverter isso, não dá para comparar.

Então, as datas são importantes para marcar e dizer “olhe, a gente vem lutando durante toda a vida e a data hoje é para celebrar essa luta, para fazer pensar, questionar, quebrar tabus”. É fundamental essas datas sempre com esse foco, de conscientizar.

Certamente, hoje a situação é melhor do que já foi. A gente vai na escola com as meninas, nossas filhas e é isso, a escola sabe quem somos. Desde que chegamos já dissemos que éramos duas mães, lésbicas, com duas filhas, pontuando já na entrada que não íamos admitir qualquer tipo de preconceito nem da escola nem das famílias.

E isso faz uma diferença, a gente já está com as crianças na escola e todos sabem que elas são filhas de duas mães e a gente vive de forma bem tranquila. Raramente acontece algum posicionamento preconceituoso e, quando acontece, é mediado sempre com o apoio da escola.

Política nacional

A gente está caminhando para uma sociedade melhor, embora tenhamos regredido no cenário nacional, onde há gestores com discursos homofóbicos, agressivos, grosseiros, sem educação, sem limite, sem amor ou empatia. Isso aflorou em muita gente de uns anos para cá e vem aflorando: é raiva, ódio, intolerância, mas a gente está lutando.

Precisamos resgatar o respeito, o carinho, o amor, e estamos nessa caminhada de retomar o respeito pelas diferenças.

Justiça Eleitoral

Eu acho que a Justiça Eleitoral baiana tem um resquício de visão tradicional e arcaica que ainda é compartilhada por alguns servidores. Então, imagina você colocar um gay bem afeminado como secretário... existe um tabu enorme e a gente precisa lutar contra isso, e entender que o que importa é a pessoa, o ser humano, o caráter, a ética, a competência e não a orientação sexual.

Internamente, isso está mudando. Já tivemos cargos de gestão ocupados por pessoas LGBTQIA+, o que mostra uma transformação de pensamento. E eu estou falando da coisa mais afeminada, porque é o que a sociedade fica querendo encobrir. É aquela ideia: "tudo bem que você seja gay, mas os outros não precisam saber, faça isso dentro de quatro paredes".

Não! Eu fui casada durante 20 anos, tenho duas filhas, éramos duas mulheres e a gente não ficou se escondendo, estávamos sempre nos posicionando. Até hoje faço isso de forma tranquila e natural.

A gente não tem que se esconder, tem que falar. Infelizmente, o machismo é uma coisa bizarra, porque faz com que muitos homens não falem sua orientação sexual e ainda ataquem como uma forma de defesa. Acho que o Tribunal tem uma questão de evolução muito grande ainda, mas já está no caminho.

Eu chefio uma unidade de capacitação, a minha ex-companheira chefia um cartório, tem outros que chefiam cartórios e outras unidades. A gente precisa de muito mais? Certamente. Mas o que eu vejo é que a nossa comunicação propaga a diversidade. A sociedade tem dado passos largos para não ser homofóbica e isso se reflete no TRE-BA também.

Falando carinhosamente da minha unidade atual, a EFAS, e das outras que passei, que entendo refletir o TRE-BA como um todo, nunca a minha orientação sexual foi problema ou embaraço, muito pelo contrário, só recebo acolhimento e admiração por me posicionar e viver minha vida. Estamos falando de amor. Não tenham medo do amor.

CB

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